Permanência e Mudança - uma introdução
Da História das Ideias
Perscrutar as ideias de um determinado período histórico significa procurar interpretá-lo segundo as concepções que constituem os eventos, factuais ou intelectivos, e, simultaneamente, intelegir uma evolução projectada no futuro através da identificação de permanências e de mudanças. A reflexão de quem, na actualidade, se debruça sobre o passado e o próprio passado torna-se, assim, elementos inseparáveis. O passado é presente no âmbito da compreensão e da interpretação desse passado. E o presente existe no passado enquanto potência que se actualiza.
Neste contexto, “A História das ideias define-se menos pela incidência reflexa do acontecimental ou do serial da história e define-se mais pela pensabilidade do facto, pela tensão do facto e pela perspectiva interrogante, para além das exigências estritas do cuidado heurístico e do tempo histórico”[1].
A História das ideias
políticas tem uma especificidade própria que decorre da incidência do seu
objecto de estudo no elemento primordial do político – o poder político – sendo
que todas as relações políticas são, no fundamental, relações de poder. Por
outro lado, as ideias políticas são o substrato da conceptualização do poder
político e dos seus mecanismos de acção. Porém, o “homem portador de ideias”
não pode reconhecer a repercussão do seu pensamento no futuro, no plano
político, cabendo ao “homem historiador das ideias políticas” percepcionar a
evolução cultural e virtualmente política do acervo de ideias veiculadas pelo
“homem portador de ideias”.
Conforme se vão
exercitando os diversos métodos de “fazer história”, mais claramente se impõe a
necessidade de uma investigação das ideias pensadas somente como ideias. “A menos que desejemos reduzir as ideias a
expressão de mentalidades colectivas, ou de processos psicológicos ou de
epifenómenos de forças sociais e económicas, ou de comportamentos linguísticos,
qualquer coisa fica esquecida – nomeadamente a História das Ideias”.
Este olhar reflexivo
sobre o passado, que é o “fazer História das Ideias”, assume um carácter
subjectivo e abstracto, pois o seu objecto – as ideias – é uma parte integrante
da realidade, cuja complexidade e interacção conectiva promove a diversidade
das perspectivas do “fazer história”. Daqui resulta que qualquer das
perspectivas prosseguidas não conduzirá a uma realidade última das coisas, nem
garantirá uma via especial de acesso à verdade. Esta actividade
compreensiva-interpretativa, por ser fruto de um acto de ajuizar, dependente da
capacidade de reflexão do historiador sobre o elo entre o passado e o presente,
apontando para conclusões assumidamente relativas, na medida em que retira às
conclusões o carácter finalista e dogmático, permitindo um contínuo repensar.
Este permanente desafio
torna possível entender a História como algo mais que um simples encadear de
acontecimentos. Não se entenda, contudo, esta afirmação como um desprezo pela
importância dos factos, porquanto estes e as ideias são os suportes mediatos e
imediatos da actividade reflexiva. Os factos e as ideias não constituem,
obviamente, mundos separados e fechados sobre si. A sua correlação decorre da
actualização das ideias nos factos e da participação destes na subjectividade
daquelas. O real é, deste modo, observado como um todo dinâmico que pode ser
pensado, em busca do nexo existente entre o ser pensante e o ser actuante.
Cabe, assim, ao
historiador das ideias percepcionar o evoluir das ideias, as suas mudanças e os
seus diferentes matizes, e situá-las no contexto dos factos, dos hábitos de
acção, dos problemas e dos valores. O carácter compreensivo-interpretativo da
abordagem e o desiderato específico relativamente ao real, tendo como
referencial primeiro desta aproximação o homem como “portador de ideias”,
permite-nos a distinção de outros ramos do conhecimento histórico. “Fazer história na perspectiva da História
das Ideias implica, como tarefa primordial, não tanto definir os conceitos, nem
conhecer a origem das ideias de forma abstracta e especulativa, mas estudar os
homens concretos “portadores de ideias”, situando-os nas conjunturas culturais
e civilizacionais em que se enquadra a sua estrutura de pensamento”[2].
Ao entender as ideias
como valores em si mesmo, bem como a sua inevitável referência a contextos,
abrimos caminho para o reconhecimento da interdisciplinaridade da História das
Ideias. Daqui decorre que as ideias na sua especificidade são perpassadas por
um fio condutor que lhes permite participar de uma lógica comum. Emergem,
assim, as ideias políticas, sociais, económicas, religiosas, que embora se
enquadrem em diferentes áreas de conhecimento, interrelacionam-se numa unidade
conceptual.
Nas múltiplas vertentes
da História das Ideias surge, então, o peso dos conceitos e da sua conflitual
idade com as ideias que, embora sejam a actualização daqueles, apresentam-se de
forma diferenciada. É, por isso, que a História das Ideias é a história das
diferenças, seja qual for a perspectiva que se considere, porquanto qualquer
transformação, por mais radical que seja, não se reflecte de igual modo em todo
o real.
As ideias dominantes
porque abstracções são similares aos conceitos, como tal não são suficientes
para tornar compreensíveis as situações concretas. Em suma, as ideias
dominantes permitem conhecer a diversidade dentro duma mesma dominância. E,
assim, tornam possível uma mais completa compreensão do devir histórico,
enquanto dinâmica composta de tensões inerentes a esse mesmo devir.
Neste quadro, as ideias
dominantes fomentarão práticas diversas, sem, contudo, destruírem o papel de
referencial inspirador dessas ideias. A perspectiva compreensiva-interpretativa
desta multiplicidade, privilegiando as ideias como expressão do caminhar
humano, é a tarefa da História das Ideias, que consciente da conexidade
ideia-facto, não causal, mas compreensiva-interpretativa, observa a unidade da
realidade humana e a sua diversidade no tempo.
Qualquer
reflexão sobre a História das Ideias distingue a existência de dois níveis de
investigação – um geral e outro particular – e a constante articulação do
pensamento a da realidade. Além disso, reconhece a sua não identificação com
outras áreas do saber histórico, assim como o carácter
compreensivo-interpretativo da abordagem e do objectivo relativamente ao real,
tendo como referente primordial o homem como ser pensante.
A
História das Ideias na sua feição geral procura compreender e interpretar o
real, situado e datado, considerando-o como um todo passível de ser reflectido
sob o ponto de vista das virtualidades que o enformam, conferindo-lhe sentido
teórico. O real é assim encarado como um todo dinâmico e vivo imaginado sob o
ponto de vista da sua totalidade. No entanto, esta pode ser pensada procurando
o nexo ou entre os acontecimentos ou entre as ideias que subjazem a esses
acontecimentos. O historiador será, assim, o ser pensante em busca de um ser
actuante ou em busca de um outro ser pensante. Este último será o historiador
das ideias, ou da história cultural, entendendo-se esta como a história das
representações mentais de um todo social. Como tal, esta próxima da chamada
história social das ideias, isto é, a história das ideias de todos e não das
ideias dos pensadores mais originais de uma determinada época.
Quando
estes métodos de escrever história do pensamento forem sendo experimentados,
irá surgindo com frequência, não só espaço, mas necessidade de uma investigação
de ideias pensadas simplesmente como ideias. Contudo, para o fazer, o
historiador tem de entender as ideias em questão, não apenas como
acontecimentos mentais e sociais, mas como fenómenos intelectuais com a sua
própria lógica. Por isto, os historiadores têm de reconstruir as premissas e as
implicações das teorias. O entendimento das ideias como valores em si e a sua
referência a contextos sociológicos e teóricos aponta, por um lado, para o
carácter específico das ideias e, por outro, para a interdisciplinaridade
própria da História das Ideias.
Aqui
se situa a tensão entre o conceito e as ideias. Considerando-se as ideias
actualização do conceito decorrente do circunstancialismo histórico, mantém
necessariamente a referência conceptual, embora, com acentuações, matizes e
implicações diferenciadas. A afirmação de que a História das Ideias é a
história das diferenças decorre desta perspectiva, embora, no enfoque social em
que se situa, privilegie a divulgação, a aceitação e a eficácia das mesmas, e
até a sua transformação.
Deste
modo, a História das Ideias é a história de um processo social e não de
enunciados individuais. Sendo assim, os “homens portadores de ideias” diluem-se
numa abordagem que os ignora na individualidade, sem que, de certo modo, se
esqueça o papel das ideias dominantes como caracterização de uma época ou de
uma sociedade. Perfila-se, deste modo, um potencial confronto entre a
perspectiva social e perspectiva individual da História das Ideias, o que, a
concretizar-se, levantaria questões de carácter epistemológico. Porém, tendo em
conta serem as representações mentais o referente comum a ambas as
perspectivas, existe realmente a unidade indispensável a uma única
conceptualização. Para além disso, todas as representações mentais decorrem, em
última análise, do homem como ser pensante, quer se procurem na individualidade
de uma personalidade, quer se busquem no pluralismo de qualquer comunidade, ou
seja, quer se pretenda detectar a sua potencialidade ou o seu impacto.
Fazer
História das Ideias envolve, pois, a opção entre uma perspectiva
prevalentemente teórica e uma outra de acentuado cariz circunstancial, sem
exclusão de qualquer deles. Criação não exclui participação, mas também não se
identifica com ela. Por isso, se a história da comunicação, tal como a história
do pensamento ou a história dos acontecimentos, constituem fontes privilegiadas
de análise para a História das Ideias, nem absorvem o seu campo epistemológico,
nem esta se esgota em qualquer delas. Dir-se-ia que a História das Ideias,
enquanto conjuga pensamento e realidade, procura essencialmente ou a face
oculta da realidade ou a face concreta do pensamento, sem ignorar um nem outro.
Rejeita, assim, o monismo para integrar o pluralismo decorrente da diferença,
sem que, com isso, ponha em causa a sua identidade epistemológica. Pode mesmo
dizer-se que esta reside na interacção do homem como ser pensante e do homem
como ser actuante, no processo compreensivo-interpretativo da realidade
histórica, qualquer que seja o realce conferido a qualquer deles.
Ao
conjugar a identidade com a diferença, a História das Ideias legitima a
diversidade metodológica, tal como ao conjugar as ideias a as acções,
privilegiando umas ou as outras, legitima tanto a vertente teórica
individualizante como a história socializante. E, assim, o historiador
vocacionado para a dimensão social das ideias tratará de explicar os processos
de difusão das representações mentais e ideológicas desde as suas origens até à
base social que os interioriza, atendendo também aos canais em que flúem as
ideias, às transformações que estas sofrem no processo e, sobretudo, ao grau de
eficácia da sua recepção. Por seu turno, o historiador que opte pelo cariz
individualizante, encontra no pensamento dos autores escolhidos os sinais de
toda a sua época e a sua filiação intelectual, mas também níveis distintos que
de alguma forma a transcendem. É precisamente esta transcendência que os
individualiza e que, numa perspectiva histórica e gnosiológica, permite
caracterizar as ideias expressas. Enquanto dinâmicas projectam-se no futuro
como expoentes de ruptura ou de mudança; como dominantes ou representativas
situam-se no presente e definem-no. Ao enunciar as primeiras, o autor situa-se
para além da realidade em que se situa e ao expor as segundas insere-se nela. O
carácter inovador de umas e definidor das outras torna-se, pois, expressão do
que de individual e de social existe no autor – o que o separa da realidade e,
eventualmente, do mundo cultural em que esta inserido, e o que o integra num e
no outro. E quer ele apenas enuncie a inovação ou, de forma maior ou menor
desenvolvida, tire as consequências decorrentes do seu enunciado, terá sempre
de ser considerado como participando activamente de um processo evolutivo. Por
seu lado, as ideias dominantes, mesmo fazendo do autor um líder de opinião,
prendem-no ao tempo e ao lugar, expressando, no futuro, a memória do que foi e
não o ideal do que havia de vir. Nesta perspectiva, a história individual ou
individualizante das ideias participa de um duplo processo. Um processo de
evolução que privilegia a capacidade criativa do autor e um processo de
comunicação ligado ao impacto social da obra.
Em
suma, o historiador ao colmatar lacunas e ao tirar outras ilações do pensamento
expendido pelo autor, completa com a sua experiência localizada e datada, a
construção do autor também ela localizada e datada. Neste sentido, fazer
História das Ideias envolve num interrelacionamento entre o autor e o
historiador, de feição interpretativa-compreensiva, que se consubstancia
historicamente, fazendo do passado-presente o tempo por excelência da História
das Ideias. Integra-se neste contexto a noção de ideias dinâmicas e, ao mesmo
tempo, revela-se a secundarização relativa da concepção de ideias dominantes ou
representativas, devido ao carácter de eminente projecção e continua
complementaridade das ideias, tal como vão sendo expressas na comum teorização
do autor e do historiador.
Das Ideias Políticas
A
ordem política não é um simples produto do homem enquanto animal naturalmente
gregário, mas sim a consequência do homem como animal racional, onde o racional
não é a antinomia face ao natural, mas algo que emerge dele. Se existe uma
primeira etapa que coincide com a lógica do rebanho, comum aos outros animais,
surgem posteriormente formas gregárias exclusivamente humanas, marcadas por
ondas de racionalidade. Emergem assim crescentes espaços de sociabilidade, com
cada vez maiores bens comuns, que geram, fundados no natural, a artificialidade
da cultura. É neste crescendo que se passa do social ao político. “… la politique apparaît comme l’une des
“provinces de la culture”: de la Cité antique aux démocraties contemporaines,
en passant par les seigneuries, les monarchies absolues, les révolutions …”[3].
Platão
observava que a origem da sociedade resultava da impotência em que cada homem
se encontra para bastar-se a si mesmo. Daqui resulta que na base de todas as
coisas sociais está o homem concreto, com as suas necessidades e as suas
circunstâncias. Numa primeira fase apenas existe um interesse comum
distributivo, mas não ainda um interesse colectivo, isto é, aquilo que
designaremos por bem comum. Em suma, o que toma forma através do auto-interesse
e da necessidade de sobrevivência dirige-se depois para o bem comum.
A polis não é, assim, uma simples emanação
da natureza, mas sim um produto da acção racional do homem. Nos textos
sagrados, entre as coisas que Deus criou não encontramos a polis, porquanto esta é algo que o homem cultivou sobre a natureza.
A polis é, segundo Ortega y Gasset, “a superação da casa, a criação de uma
entidade mais abstracta e mais alta que o oikos familiar. É a república, a politeia, que não se compõem de homens e mulheres, mas de cidadãos, quando nos
separámos do campo, da natureza, do cosmos geobotânico, quando, a partir da
praça pública (ágora ou forum), se criou um espaço sui generis, novíssimo, em que o homem se liberta da
planta e do animal, deixa estes de fora e cria um âmbito à parte, puramente
humano. É o espaço civil, a cidade racional do ius, a opor-se ao campo vegetal, ao rus”[4].
Esta
crescente complexificação, emergente do espaço básico do social e marcada pela
racionalidade técnica, que procura o bem-estar, a segurança, a utilidade e o
interesse, é perpassada pela problemática da justiça através da racionalidade
ética.
A
esta perspectiva moderna de constituição do político assente na razão humana
opõem-se, não só a teoria antiga que inscreve a existência política dos homens
na natureza das coisas, como também a visão cristã medieval que submete a
autonomia humana à providência divina. “L’experience
originelle du politique ayant son lieu d’excellence dans les vieilles Cités
grecques, le naturalisme a trouvé sa formulation la plus nette dans la
philosophie antique. Mais il y a pris des accents diversifiés en rapportant la
politique soit à l’ordre immanent du cosmos, soit, avec l’avènement du
christianisme, à la volonté du Dieu créateur.”[5].
Poderemos
concluir, assim, que o político brotou do social, tal como o social se
acrescentou ao natural, sendo que os dois, embora diferentes, nem por isso
deixam de ter comunicação, tanto entre em si como com a raiz donde brotam.
Deste modo, tanto a perspectiva de que “… l’existence
politique appartient à lórdre cosmique des choses, en quoi la pensée chrétienne
vit une manifestation de la volonté du Dieu créateur …”[6],
como a de que “… la pensée “moderne”, en installant au devant de la scène
philosophique un homme doué de raison et capable de conduire sa propre vie …”[7],
compaginam o natural com o social e o social com o político.
No
primado do político emerge então um quid
que ultrapassa e ordena a política que é a justiça, um fim que está fora da
política, que supera o bem-estar e a segurança, que vai para além da lógica
atomística do todo como soma dos singulares, numa expressão de Rousseau, “la volonté de tous”. Porém, porque o
primado do político exige o globalismo do todo como um universal, impõe-se “la volonté générale”.
Neste
contexto, o poder político não pertence aos homens a título particular, mas sim
aos homens tomados colectivamente. O poder político está na comunidade
politicamente organizada e não na multidão inorgânica. “… este poder não está em todos os homens tomados separadamente nem na
colecção ou multidão deles num corpo quase confuso e sem ordem nem união de
membros. Este poder não resulta na natureza humana até que os homens se reúnem
numa comunidade perfeita e se unem politicamente.”[8].
O político é assim uma “invenção” marcada por uma estratégia globalizante, onde
existe uma especial forma de poder – o poder político – a síntese emergente,
integrante de vários micro-poderes, onde uma multiplicidade de actores age numa
determinada unidade, em quadros estruturais e em circuitos institucionais. O
político é então edificado através de acções humanas orientadas por ideias,
onde não existe uma reprodução passiva de um sentido apriorístico, mas uma
interacção, ao jeito de adesão constitutiva à ideia de obra. O político é um
poder mais uma ideia.
A
trilogia ideia-poder-obra conduz-nos à tematização de pacto social, o qual, por
um lado, dá expressão jurídica à constituição da sociedade política e, por
outro, coloca o político no espaço humanista e racionalista. Como refere Simone
Goyard-Fabre: “… la politique est placée
sous le double signe de l’humanisme et du rationalisme.” … “Aussi bien les
théories contractualistes expliquent-elles l’émergence de la société politique
en recourant à l’idée de pacte social”[9].
Mas o que é a política?
Eis uma questão que, através da história das ideias, retorna ciclicamente. A
política faz lembrar o círculo de Pascal, cujo centro está em toda a parte e
cuja circunferência não está em parte nenhuma; ou seja, diversas são as suas
definições e inúmeras as vias de acesso que permitem descobrir-lhe a natureza e
significado. Tratar-se-á de uma verdadeira ciência: a do governo dos Estados;
mas, uma das vias da política não conduz precisamente a dissociá-la do Estado
para permitir que esta se converta em sentimento vivido pelo cidadão?
Consistirá então a política numa espécie de problemática das sociedades
humanas, o que nos conduzirá a considerá-la como “a ciência do poder organizado em todas as comunidades”[10]?
Se a política é uma
ciência, será uma ciência moral, como diz Jean Dabin[11],
e para a compreendermos teremos de fazer intervir elementos que lhe são
exteriores? Implicará ela um recurso à ideia de valores, e não será ela, como
D’Alembert ironicamente escreveu, uma “espécie
de moral de um género especial e superior, à qual, por vezes, só com muita
finura podem acomodar-se os princípios da moral vulgar?”[12]
A política é, por
excelência, o domínio da ambiguidade. Talvez porque ela se situa no centro de
toda uma série de contradições, a menor das quais não será, porventura, os
movimentos que a seu respeito vão animando as sociedades. Não surpreende assim
que o fenómeno da política tenha consequências psicológicas. O Estado tornou-se
uma ideia fixa e pensamos na recriminação de Zaratustra: “Nalgum lado haverá ainda povos e rebanhos, mas entre nós, meus irmãos:
entre nós há Estados”[13].
Onde não há Estado não há história. Progresso e Estado estão indissociavelmente
ligados na representação do mundo e todos os canais da acção pública estão
orientados no sentido e na direcção do Estado.
A política, usando uma
fórmula célebre, são ideias. No entanto, outros há que reduzem a política a
conflitos de ordem material e à luta pelo poder. Se afirmamos que uns e outros
têm razão, não é por excesso de prudência, na realidade, aqueles elementos estão
presentes naquelas situações que, ressalvando alguma autonomia, determinam as
atitudes dos indivíduos, a sua predisposição para agir individualmente ou em
grupos de interesse.
As ideias entraram na
cultura política por via de um dos seus aspectos prevalentes que é o de propor
aos concidadãos paradigmas de interpretação e de conduta. Simultaneamente, o
próprio movimento da vida social faz com que se ponha ciclicamente em questão –
reformas, recriações, substituições – esses sistemas intelectuais:
transformação que, segundo o dinamismo da sociedade em causa, exigirá séculos
ou alguns anos.
A ideia, incorporada nas
normas culturais de um povo, transforma-se no motor das escolhas e dos
comportamentos, mas penetrando naquele meio à custa de uma espécie de
elaboração social que lhe confere um aspecto particular. A ideia inspira
atitudes, mas são igualmente as atitudes que a moldaram e lhe conferiram o seu
conteúdo actual.
Por outro lado, as
ideias, sejam quais forem as suas origens, adquirem uma espécie de vida
autónoma, uma autonomia relativa, que acaba por colocar várias delas contra a
evolução social: algumas vão-se revelando avançadas em relação à sua época,
outras não correspondem mais às exigências da mesma.
Esta autonomia dos
sistemas intelectuais justifica uma análise do seu papel na formação dos
temperamentos políticos. Para efectuar esta análise é necessário utilizar as
palavras ideia e ideologia. Segundo alguns autores, a ideia será um produto
intelectual em estado puro, enquanto a ideologia traduzirá o estado dessa ideia
após a passagem para o nível da assimilação colectiva, o que implica
simplificações e deformações.
Com efeito, embora seja
possível distinguir o sistema de pensamento de determinado autor da elaboração
que se faz desse sistema no plano prático, a distinção entre ideia e ideologia
permanece puramente convencional.
A história do conceito
de ideologia é a história de várias tentativas para encontrar um ponto firme
fora da esfera do discurso ideológico, um local fixo de onde possamos observar
os mecanismos da ideologia em acção. Na maior parte da tradição marxista este
ponto consistiu na procura de uma classe ou grupo específico cujos
representantes tivessem uma peculiar vocação para o pensamento não ideológico.
No Iluminismo, de tradição racionalista e empírica, confiou-se numa ciência
objectiva da sociedade que expusesse a irracionalidade das concepções
ideológicas.
Ambas as tradições
encaram a possibilidade de uma sociedade sem ideologia – uma sociedade marxista
onde a ideologia é encarada como um baluarte do poder de classe não seja mais
necessária ou uma sociedade capitalista onde as regras óbvias duma economia de
mercado racional se imporão por si próprias. Mas o fantasma do relativismo de
todas as exigências de verdade que afligiu a humanidade, pelo menos desde que
Platão, em Protágoras, negou a possibilidade da verdade objectiva, recusa-se a
ser banido. Qualquer investigação sobre ideologia torna difícil evitar a
lamentável conclusão de que todas as opiniões sobre ideologia são em si
próprias ideológicas. Segundo o filósofo alemão Jurgen Habermas, esta nova
visão do mundo “emerge da crítica das
dogmáticas e tradicionais interpretações do mundo e reclama-se de um carácter
científico. No entanto, detém funções de legitimidade, mantendo assim as
verdadeiras relações de poder inacessíveis à análise e consciência públicas. É
desta maneira que primeiro surgiram as ideologias no sentido restrito.
Substituem as tradicionais justificações de poder surgindo sob a auréola de
ciência moderna e indo buscar a sua razão de ser à crítica da ideologia. As
ideologias são contemporâneas da crítica da ideologia”.
Neste sentido não pode
haver ideologias pré-burguesas. As convicções tradicionais, justamente porque
são tradicionais, tendem a ser estáticas e a apoiar-se numa fonte de autoridade
restrita e hierarquicamente estruturada. Mas assim como o poder da tradição se
desvanece, também as ideias se abrem à contestação e começam a competir. Os
mitos do passado serviram principalmente para promover os valores a volta dos
quais as sociedades se puderam integrar e continuaram como entidades coerentes:
os mitos não competiam. As ideologias, por outro lado, foram os produtos de uma
sociedade cada vez mais pluralista e estavam associados a grupos rivais cujos
interesses sectoriais serviam. Enquanto a religião tradicional se centrava na
interacção entre a vida quotidiana dos indivíduos e o carácter sagrado de uma
outra dimensão mundial, o universo secularizado da ideologia dedicava-se a
legitimar os projectos públicos desta transformação mundial por meio de apelos
à ciência e à razão que se justificavam por si próprios. Os mitos constitutivos
da sociedade do passado foram herdados e formaram uma determinada estrutura que
transcendeu o mundo social; as ideologias são tipicamente a nossa criação extraída
de penosas investigações das nossas próprias sociedades. Esta tendência é, por
sua vez, incrementada pela democratização crescente do processo político.
A Revolução Industrial
implicou uma revolução nas comunicações durante a qual a capacidade literária
se expandiu enormemente, em paralelo com a descida de preços sem precedentes de
livros e jornais. O aumento da informação disponível e o facto de ela provir de
fontes muito divergentes significava que a sua interpretação se tornava
problemática e, para dar um sentido a todo o novo material, surgiram estruturas
concorrentes reflectindo diferentes interesses. Mas estas estruturas ou
ideologias, apesar da sua origem inevitavelmente parcial, tinham de ter um
apelo universal. Pois que, com a crescente participação das massas na política,
a persuasão, mais do que a mera autoridade, estava na ordem do dia. Na era da
liberdade, fraternidade e igualdade, os únicos processos que podiam sequer
aspirar a aceitação universal eram os que se baseavam em ideias de razão e
ciência aparentemente universais.
A palavra ideologia é de
origem francesa, mas embora seja um produto directo do Iluminismo francês, a
noção tem obviamente as suas raízes nas questões filosóficas gerais acerca do
significado e intenção com as quais o colapso da visão mundial medieval confrontou
os intelectuais da Europa Ocidental. Estas questões foram encorajadas pelo
impacto do Protestantismo, com a sua insistência no indivíduo, na liberdade de
consciência e no poder transformador da palavra em vez da presença
tranquilizadora do ritual. Contudo, precursores mais directos dos primeiros
estudiosos da ideologia foram pensadores como Francis Bacon e Thomas Hobbes. No
seu Novum Organon (1620), Bacon
tentou esboçar uma aproximação ao estudo da sociedade baseado na observação.
Até aí, o entendimento humano tinha sido obscurecido pelo que ele chamava de
ídolos – concepções irracionais. Havia quatro espécies de ídolos: da tribo, da
caverna, da feira e do teatro. Os primeiros ídolos, os da tribo, incluem a
tendência para aceitar o que foi consagrado pela tradição ou para deixar que as
paixões impeçam a aquisição do conhecimento racional. Os ídolos da caverna são
os que emergem do ponto de vista particular do indivíduo o que, muitas vezes,
obsta a uma perspectiva mais geral. Os ídolos da feira são linguísticos, sendo
a feira o símbolo da convivência social, o que está frequentemente em colisão
com a realidade e assim, novamente, constitui uma obstrução ao conhecimento
racional. Os ídolos do teatro são as concepções dogmáticas de outros tempos o
que, dada a ausência de fundamentação empírica, não é melhor do que as ficções
dramáticas.
A teoria dos ídolos de
Bacon está na origem da moderna ciência social. Influenciou fortemente tanto a
tradição empírica inglesa em Hobbes e Locke como o Iluminismo francês, o qual,
provavelmente, produziu o conceito de ideologia. Ao contrário dos seus antecessores
em Inglaterra, onde o poder do trono e do altar tinha sido consideravelmente
reduzido no século anterior, os filósofos do Iluminismo francês tiveram de
lutar com uma monarquia absolutista aliada a uma Igreja autocrática. Em
consequência, enquanto para Maquiavel e Bacon a religião tinha sido uma força
essencialmente aglutinadora, para os principais pensadores do Iluminismo em
França ela foi o maior obstáculo a um ordenamento racional da sociedade. A
chave para esta reforma social esta na natureza e na razão. Tal como escreveu
Holbach, um dos seus principais porta-vozes: “A fonte da infelicidade do homem é a sua ignorância da natureza. O mais
importante dos nossos deveres é, pois, procurar os meios para destruirmos as
ilusões que mais não fazem do que confundir-nos. Os remédios para estes males
devem ser procurados na própria Natureza; é somente na abundância dos seus
recursos que podemos racionalmente esperar descobrir antídotos para os danos
causados por um entusiasmo mal dirigido e escravizante... Com este objectivo, a
razão tem de ser reconduzida ao seu lugar próprio... Não mais deve ser esmagada
pelas pesadas correntes do preconceito”.
A solução para os
preconceitos e mentiras alimentados por padres e reis, a fim de escudar o seu
próprio poder, residia na omnipotência da instrução. Algumas vezes os
pensadores do Iluminismo admitiram as determinantes sociais do conhecimento,
como quando Helvécio fez notar que os insectos da erva comida pelas ovelhas
poderiam considerar as ovelhas ferozes predadoras, e os lobos, que dizimam as
ovelhas, completamente inofensivos. Mas no geral tinham pouca defesa contra a
subsequente acusação de Marx de que “a doutrina materialista acerca da
alteração de circunstâncias e de educação esquece que as circunstâncias são
modificadas pelos homens e que é essencial educar o próprio educador”. A sua
única resposta era depositar uma confiança ilimitada no poder da razão para
desacreditar o preconceito.
Os pensadores do
Iluminismo foram os precursores intelectuais da Revolução Francesa de 1789; e
foi na sequência imediata da Revolução Francesa que o termo ideologia foi pela
primeira vez registado. O seu criador, em 1797, foi Antoine Destutt de Tracy,
membro de um grupo de filósofos a quem a Convenção revolucionária encarregara
do recém-fundado Instituto de França, especificamente para espalhar as ideias
do Iluminismo. O Instituto gozou por pouco tempo do patrocínio de Napoleão, que
se tornou sócio honorário antes de a sua Concordata com a Igreja e o seu
crescente despotismo pessoal terem provocado a ruptura. Na sua obra Elementos
da Ideologia, escrita entre 1801 e 1815, de Tracy propôs uma nova ciência de
ideias, uma ideologia, que seria a base de todas as outras ciências. Rejeitando
o conceito de ideias inatas, de Tracy explicou como as nossas ideias são
baseadas em sensações físicas. Uma investigação racional da origem das ideias,
liberta de todo o preconceito religioso ou metafísico, seria a base para uma
sociedade justa e feliz. Pois que a investigação das ideias individuais
mostraria a sua origem comum nas necessidades e desejos universais do homem.
Essas necessidades constituiriam a estrutura das leis reguladoras da sociedade,
numa base natural, e fomentadoras da realização harmoniosa dos desejos
pertinentes. Pois que o natural e o social coincidiam. E esta coincidência
seria revelada pela determinação racional da origem das ideias, pela ideologia.
Assim, na sua origem, a
noção de ideologia foi positiva e progressiva. Aos olhos de Napoleão, contudo,
rapidamente se tornou pejorativa. A medida que o seu governo evoluía para um
império suportado pela religião estabelecida, a crítica dos ideólogos liberais
e republicanos tornava-se inevitável. E foi em parte a eles que Napoleão lançou
as culpas depois da sua retirada de Moscovo: “É à ideologia, essa metafísica nebulosa que numa subtil busca das
causas primeiras pretende estabelecer a base da legislação dos povos, em vez de
extrair as suas leis do conhecimento do coração humano e das lições da
história, que devemos atribuir todos os infortúnios da nossa querida França”.
Esta oscilação entre uma
conotação positiva e uma negativa será característica de toda a história do
conceito de ideologia. A ideologia tem origem alemã tanto quanto francesa –
embora aqui, também, a Revolução Francesa tenha constituído um acontecimento
crucial. Para os filósofos do Iluminismo, os princípios pelos quais criticaram
o ancien régime e em nome dos quais
se fez a Revolução Francesa eram óbvios. No entanto, o rescaldo da Revolução
Francesa – a ascensão de Napoleão ao poder e os acontecimentos catastróficos
durante as duas décadas seguintes não se afigurou nem particularmente natural
nem racional. Além disso, o ritmo aglutinador da Revolução Industrial impôs
alterações e progresso durante essa época.
O movimento romântico,
especialmente forte na Alemanha, pôs em evidência a maneira como atribuímos ao
mundo os nossos próprios desígnios. Ao contrário de de Tracy, para quem os
mundos natural e social pareciam transparentes a uma mente racional, os românticos
alemães consideravam que os seres humanos criavam colectiva e individualmente a
sua própria realidade, como resposta as circunstâncias instáveis. Para Hegel,
que tentou dar a estas ideias uma base intelectual sistemática, as ideias de
uma determinada época não podiam reclamar-se de uma validade absoluta em si
próprias, pois que eram evidentemente relativas a situações históricas em
mutação. Se havia uma racionalidade, um significado para a história, ele teria
de ser encontrado na totalidade do nosso processo e não nos objectivos parciais
de determinados indivíduos e épocas. Na verdade, os projectos de indivíduos e
épocas foram o meio pelo qual a famosa “argúcia da Razão” produziu um resultado
muitas vezes bem diferente do que estava na intenção dos pensadores originais.
Estas ideias hegelianas influenciaram Marx e foi o Marxismo, combinando as
tendências francesa e alemã, que pôs o conceito de ideologia na vanguarda do
discurso político. O jovem Marx, como discípulo de Hegel, procurou explicar as
mudanças nas ideias sociais a políticas em termos das divisões sociais
ocasionadas pelas diferentes maneiras como os seres humanos tinham organizado
historicamente o seu trabalho produtivo. Mais tarde, particularmente com
Engels, a tradição positivista de de Tracy, a tentativa de uma ciência
objectiva da sociedade, foi mais notória. De qualquer maneira, até as últimas
décadas, o estudo da ideologia, embora já idealizado, foi grandemente o
monopólio de quem, de qualquer modo, estivesse ligado a tradição marxista.
Contudo, o chamado
estudo científico objectivo da ideologia à maneira de de Tracy sofreu um forte
incremento no Ocidente depois da Segunda Guerra Mundial, principalmente nos
Estados Unidos. A catástrofe imposta ao mundo pelo movimento nazi, a desilusão
de muita gente quando se tornaram conhecidos os excessos do Estalinismo e a
consciência de que o Comunismo soviético constituía uma ameaça monolítica à
democracia de estilo ocidental provocaram o interesse em explicar a origem e o
poder destas ideias. E este interesse foi reforçado pelo impacto do pensamento
de Mao-Tsé Tung na sociedade chinesa, em especial no Grande Salto em Frente o
na Revolução Cultural, e também pelo poder evidente dos ideais de libertação
nacional em tantos países do Terceiro Mundo. Com estes autores o termo
ideologia tomou um sentido nitidamente pejorativo associado intelectualmente
com a irracionalidade e politicamente com o conceito de totalitarismo.
Esta aversão foi
reforçada pelo domínio do “behaviorismo” na ciência política americana e da
filosofia analítica na Grã-Bretanha, os quais se aliaram de maneira empírica
fortemente pragmática a fim de desencorajar uma especulação em larga escala,
fazendo perguntas mais simples sobre o que era considerado evidente ou de uso
linguístico. Neste ponto de vista, a era da ideologia já passara, pertencia ao
período específico da industrialização que, seguindo-se ao colapso das
sociedades tradicionais, dera origem a muita agitação intelectual entre grupos
rivais. O Nazismo, e mais especialmente o Comunismo, eram restos do século XIX,
sem importância para as sociedades desenvolvidas pós-industriais, onde os
problemas técnicos, com soluções técnicas, estavam na linha da frente.
Ironicamente, o termo que Marx e os seus seguidores tanto se tinham esforçado
por popularizar era agora usado como arma contra o Marxismo. Ganhou terreno a
suspeita de que a reivindicação de uma ciência objectiva da ideologia possa ser
em si mesma ideológica. Pois quanto menos os governantes de uma sociedade
desejem usar a força, mais necessitam de se apoiar em várias normas consensuais
para legitimar o seu poder.
Apesar de terem variado
as aplicações do termo ideologia nos últimos dois séculos, distinguiram-se já
duas linhas principais. Uma é a perspectiva racionalista francesa de de Tracy e
seus seguidores que deram origem ao termo – embora o seu racionalismo optimista
fosse alterado no mundo anglo-saxónico por uma forte dose de empirismo. Desde o
seu início no Iluminismo através de Durkheim, até às alterações estruturalistas
e empíricas, ele põe em relevo a natureza consensual da sociedade e adopta uma
avaliação contemplativa da verdade: a verdade é uma relação com a realidade que
a observação e a razão deveriam tornar evidente a todas as pessoas de boa
vontade, pela aplicação às ciências sociais de métodos não totalmente
diferentes dos que são eficazes nas ciências naturais. A outra linha, por
contraste, tem raízes germânicas, estando originariamente associada a Hegel e
Marx e estende-se através de Mannheim até Habermas. Aqui o relevo é posto na
construção da verdade, não na sua observação. As sociedades são encaradas como
entidades em mudança, mais separadas por conflitos do que unidas por um
consenso estável. Desconfiados de qualquer processo objectivo de decidir o que
é a verdade, os adeptos deste ponto de vista têm tendência para adoptar uma
teoria da verdade baseada na coerência. E isto é especialmente assim nas
questões sociais para cuja solução os métodos das ciências naturais são
considerados impróprios. Certamente que há uma infinita variedade de posições
entre estes dois pólos mais rígidos.
“Porém,
na sociedade não dominam, obviamente, apenas factores ideológicos, mas também
existem, entre outros, fenómenos de cultura e de mentalidade. Há um entrelaçar
de realidades e, assim, se os problemas, as práticas e as ideias que se
manifestam numa dada época são fruto criativo da construção intelectual do
homem, cuja génese é mais facilmente historiada, correspondem também a
sentimentos sociais profundos, a uma espécie de inconsciente colectivo, como
resultam também de ideologias, estabelecidas ou controladas por interesses
sociais ou formadas na base de uma tentativa de recusa desses interesses
dominantes.”[14]
Torna-se
assim óbvia a dificuldade de distinguir entre o político e o social
não-político, visto que é necessário incluir na definição de político as
multicomplexidades da existência real. Se numa definição restritiva e
neomaquivélica considerássemos que a política é o conjunto de fenómenos
relacionados com a conquista, posse e exercício do poder, assistido este por
meios coactivos, deixaríamos de fora toda acção social fundamentada na
persuasão reivindicativa e manipulativa. Se, por outro lado, optarmos por uma
noção alargada do político, com refere Giovanni Sartori: “… qualifica tudo, e, portanto, nada tem de
específico, enquanto a esfera que reúne a ética, a economia e o estudo
político-social permanece unida, não se manifestando materialmente em
diferenciações estruturais, em estruturas e instituições qualificáveis como
políticas, distintas das económicas, religiosas e sociais.”[15].
Com efeito, a separação mais difícil, senão impossível, é entre o político e o
social, entre o âmbito da política e a esfera da sociedade.
Da História das Ideias Políticas
A História das Ideias
Políticas, enquanto ramo da História das Ideias, respeita a especificidade
desse saber histórico, designadamente a noção de ideia, observando assim as
ideias políticas na conceptualização do poder, elemento primordial do político,
na sua fundamentação, no seu exercício e na sua finalidade.
Desde logo, a razão de
ser da política é enquadrável numa perspectiva historiosófica que abarca os
vários aspectos da acção humana e a sua conversão em acção política. A História
das Ideias Políticas procura aqui interpretar os acontecimentos no quadro dos
pressupostos teóricos que tornam compreensível a constituição do político,
tanto ao nível estrutural como conjuntural. Assim sendo, tanto a conjuntura
como a estrutura política apresentam-se como pontos de chegada e de partida,
consoante se abordem sob o ponto de vista das ideias representativas do que é,
ou dinâmicas do que virá a ser.
Distinguir estas ideias,
as quais vão sofrendo alterações no decurso do tempo, é tarefa do historiador
das ideias que assim se envolve num tempo histórico que é uma conexão entre o
passado e o presente: o passado das ideias e dos factos e o presente do historiador
que, deste modo, se insere nessa conexão, fazendo do passado-presente o tempo
por excelência da História das Ideias.
Porque os “homens
portadores de ideias” não podem antecipar a repercussão política das suas
ideias, cabe ao historiador, na análise da evolução cultural, estabelecer a
actualização política das ideias veiculadas. É, assim, a História Cultural que
vai permitir a percepção do evoluir de uma ideia culturalmente aceite e
virtualmente política, quer sob o ponto de vista teórico quer prático, para a
sua concretização política enquanto ideia dominante e institucionalmente
activa.
Neste quadro, a História
das Ideias Políticas é impensável e inseparável da História Cultural. Aí se
situa a noção genérica de “homem portador de ideias” e aí se situa também a
génese evolutiva das ideias. A especificidade da História das Ideias Políticas
é assumida quando as ideias adquirem identidade política, tenham ou não, de
imediato, uma dinâmica com incidência factual. Nem sempre os “homens portadores
de ideias” são políticos, nem sempre as ideias enunciadas têm de imediato
incidência política e nem sempre se tornam ideias dominantes na mesma
conjuntura.
O tempo de evolução das
ideias com valor político passa pelo realce especial de uma ideia ou dum
pequeno conjunto de ideias divulgado por um autor, ao qual se seguem outras
contribuições de outros autores, até a emergência de um pensamento
sistematizado que promove a alteração das instituições vigentes. “A alteração das instituições (por princípio,
conservadoras) apresenta-se a nível político como a última etapa (embora sem
dúvida a mais significativa) da implantação de novos valores. Pressupõe, por
isso, uma transformação de mentalidade ou, pelo menos, uma sensibilização ao
que se apresenta como inovador, reflectindo assim uma mutação cultural mais ou
menos radical, mais ou menos generalizada.” [16]
O “fazer” História das
Ideias Políticas será, prevalentemente, estudar o “homem portador de ideias”
significativas para a fundamentação teórica e doutrinária das evoluções
políticas no contexto histórico. Este estudo revela-se decisivo para a
compreensão e interpretação de situações concretas, revelando as incidências de
uma mesma ideia em quadros temporais distintos, permitindo historiar o percurso
das ideias no decorrer do tempo.
A História das Ideias
Políticas é, assim, a conjugação do conhecimento teórico e do conhecimento
concreto, isto é, do conhecimento das ideias políticas e dos factos políticos
enquanto expressão dessas ideias. Sobre o historiador das ideias políticas recai
o desafio de estabelecer uma relação ideia-facto, autor-historiador das ideias,
criadora de um tempo novo: o tempo passado-presente.
Em suma, a inserção das
ideias políticas em contextos culturais e circunstanciais reconduz-nos à
articulação do pensamento e da realidade, procurando entender e interpretar o
real, considerando-o como um todo passível de ser reflectido sob o ponto de vista
das virtualidades que o enformam, conferindo-lhe sentido teórico. O historiador
das ideias será, então, um ser pensante em busca de outro ser pensante. Da
interacção do encontro desses dois “homens portadores de ideias” resultará a
“condenação” de “fazer” História das Ideias Políticas, cujo trânsito em julgado
imporá um contínuo repensar de um conhecimento histórico anti-conclusivo e
anti-dogmático.
[1] José Esteves
Pereira, Sobre a História das Ideias,
CHC-UNL, Lisboa, 1992, p. 19.
[2] Zília Osório de
Castro, Da História das Ideias à História
das Ideias Políticas, in Cultura Revista de História das Ideias, vol. VIII,
Centro de História da Cultura, UNL, 1996, p. 12.
[3] Simone Goyard-Fabre, Qu’est-ce que la politique? Bodin, Rousseau
& Aron, Vrin, Paris, 1992, p. 6.
[4] Ortega y Gasset,
A Rebelião das Massas, Libro
Ibero-Americano, Rio de Janeiro, 1971, pp. 169 e 170.
[5] Simone Goyard-Fabre, Qu’est-ce que la politique? Bodin, Rousseau
& Aron, Vrin, Paris, 1992 p. 15.
[6] Idem, p.18.
[7] Ibidem, p. 18.
[8] Francisco
Suarez, De legibus ac Deo legislatore,
III, 1, 5, cit. por José Adelino Maltez, Princípios
de Ciência Política, Introdução à Teoria Política, Centro de Estudos do
Pensamento Político, ISCSP, Lisboa, 1996
[9]Simone Goyard-Fabre, Qu’est-ce que la politique? Bodin, Rousseau
& Aron, Vrin, Paris, 1992, p. 19.
[10] Maurice
Duverger, Introduction à la Politique,
Colecction Idées, Paris, 1964, p. 7.
[11] Jean Dabin, L’Etat ou la Politique, Essai de définition,
1957, cit. por Jean-Pierre Lassale, in Introdução
à Política, D. Quixote, Lisboa, 1974, p. 12.
[12] Cit. por
Jean-Pierre Lassale, in Introdução à
Política, D. Quixote, Lisboa, 1974, p. 12.
[13] Frederich
Nietszche, Assim falava Zaratustra,
Círculo de Leitores, Lisboa, 1996, p. 34.
[14] Luís Reis
Torgal, História e Ideologia,
Minerva, Coimbra, 1989, p. 30.
[15] Giovanni
Sartori, A Política, edição
Universidade de Brasília, Brasília, 1981, p. 157.
[16] Zília Osório de
Castro, Cultura e Política. Manuel Borges
de Carneiro e o Vintismo, Vol. II, INIC, Lisboa, 1990, p. 465.
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