Mensagens

A mostrar mensagens de 2023

"É preciso imaginar Sísifo feliz"

"As pessoas encontram sempre o seu fardo. Mas Sísifo ensina a felicidade superior que nega os deuses e ergue as rochas. Também ele acha que está tudo bem. Este universo, doravante sem dono, não lhe parece estéril nem fútil. Cada grão da pedra, cada fragmento mineral da montanha, cheia de noite, forma por si só um mundo. A própria luta para chegar ao cume basta para encher o coração de um homem. É preciso imaginar Sísifo feliz.” A. Camus, O Mito de Sísifo, 1942 Viver é um hábito. O suicídio, o fim antecipado desse fardo, resulta da percepção do vazio, da falta de fundamento e de propósito do costume da existência. O caráter inútil da existência e os paradoxos da condição humana, estribados na contradição entre o desejo obstinado de vida e o mundo intratável, são as antinomias que cristalizam a vanidade da existência. A morte é, a final, a síntese entre a paixão pela vida e a efêmera condição humana sempre no limite de perecer. Estas absurdas antinomias esgotam quaisquer sentidos ou

outono

era uma manhã sombria de um outono que tal como todos os outros introduzia o início de uma época triste - o final do ano com a melancolia do Natal, a saudade dos que já partiram não só no ano que findava, mas em todos os outros. A última década havia sido salpicada por dúvidas sobre o sentido da vida e de como acomodar os vários ciclos da vida desde a infância à velhice em busca de um final tranquilo, conquanto saudoso da euforia das conquistas e da tristeza das desventuras. Mas os finais nunca são tranquilos, pois aquilo que finda gera sempre múltiplas interpretações, só mesmo a morte decide de vez tudo. No outono da vida impõe-se o bom senso de existir aceitando o possível. Sobrevalorizar as pequenas alegrias e rejeitar a culpa dos fracassos é a pedra de toque. Porém, o final do final é a solidão triste da amargura dos caminhos não percorridos, de todos os ses que poderiam tudo mudar e afinal aqui estar aguardando simplesmente o fim.

felicidade clandestina

ele não estava certo se o período de nojo já haveria passado, mas a saudade impunha-lhe a necessidade de escrever. Era o outrora vivido e agora desejado que naquele fim de tarde invernoso desviava o seu olhar do livro que pretendia ler e o empurrava para a secretária, onde se encontrava o computador portátil, rodeado de papéis, livros, blocos e uma porta canetas, tudo criteriosamente arrumado, como tinha de ser! O frio que se fazia sentir era-lhe desconhecido, mas até lhe agradava e, por isso, mantinha a janela aberta. A grossa camisola de lã que vestia não era usada há muito. O final de tarde permitia ainda observar o céu azul e a lua cheia iluminava ternamente aquele canto do apartamento que era o seu refúgio. O silêncio que pairava facilitava a reflexão sobre o passado e o presente. O futuro, essa incerteza motivante, já não lhe parecia motivo de qualquer especulação. A vida era tão trágica, pensava ele já sem qualquer tristeza; é tão semelhante a um pequeno passeio sobre um abismo.

carta

todos os dias ele a aguardava; o anoitecer era neutro, restando o amanhã. Via-a aparecer em sonho e cerrava os olhos como se soubesse que não a merecia ou como se quisesse adiar o instante. Esperar era quase receber. Há meses que cismava em recebê-la. Mas quais seriam, afinal, as dádivas que ela deveria trazer-lhe? Ele nem hesitava: seria o infinito a envolver a sua finitude. Porém, o amanhã e outro amanhã e depois passavam; suspeitou então de uma qualquer recusa ou de que alguém brincava com a sua urgência, distraindo-se por loucos itinerários. Conjeturou também mil formas de um eventual desencontro. A esperança resistia ao desengano. Ele queria acreditar que todos os dias ela se aproximava e quase sentia o seu pulsar, julgando que uma força subterrânea a iria trazer. Mas agora sabia por que ela não tinha vindo nem viria. Havia sido a dimensão do tempo e o incontornável acaso, essa conjugação de irracionalidades que reconfiguravam o real, transformando o idealizado num impossível dese

emoção da cebola

ele já havia saído com ela algumas vezes, mas naquela noite era um jantar na casa dela. As flores e a garrafa de vinho enquadravam o cuidado vestuário, a barba escanhoada e um pouco de água-de-colónia a mais. Dez minutos antes da hora marcada, ele já rondava o prédio onde ela morava. Era Verão e a noite estava quente, mas ele não podia caminhar para matar o tempo, pois o suor poderia alterar o aroma da água-de-colónia. Embora desejasse mais do que nunca fumar um cigarro, ele não queria que o hálito a tabaco colocasse em causa a sua julgada perfeição. Um minuto antes da hora certa, ele pressionou a campainha, a porta de entrada no prédio abriu-se, depois o elevador, que pareceu subir lentamente, por fim a porta do apartamento. Ela surgiu de avental e a choramingar, dizendo em pequenos soluços: “o jantar está um pouco atrasado”. Ele emocionou-se com aquela nunca vista fragilidade e num impulso abraçou-a, o que até então não havia acontecido, e murmurou-lhe ao ouvido: “eu não suporto vê-l

vento da memória

numa noite em que o vento golpeava as suas memórias, sentado naquele banco em frente ao prédio onde vivia, numa rua que configurava a selva de pedra que era aquele subúrbio da grande cidade, ele fumava o último cigarro do dia após ter despejado o saco do lixo no enorme caixote. Depois de diversos anos vividos longe daquela vila que agora era alegada cidade, recordava o tempo em que toda aquela área eram campos que ele percorria no caminho para o Liceu. A sua juventude havia sido enterrada na voragem da suposta construção de uma vida. No tempo do consumo de um cigarro, o fumo que saía da sua boca entoava uma canção de outono que salientava a recordação desses dias: a felicidade dos encontros, os cabelos ao vento, os beijos roubados, os juramentos inconsequentes e os sonhos mudados.

solidão

que noite fantástica de Primavera. Céu estrelado, temperatura amena e uma incrível luminosidade. Aquela noite clara, que escondia a habitual escuridão angustiante, atenuava-lhe a solidão. À janela do quarto, passava em revista o seu sinuoso trajeto e, como antes como sempre, maldizia o facto de estar só. Estar só era a condição original. O nascimento é a projeção da pessoa no mundo, deixada à sua sorte, em busca de um porto de abrigo. Disso, ele não tinha dúvidas. A dificuldade era conformar-se com o malogrado percurso que o havia conduzido àquele quarto. Estava igualmente seguro de que o modo como lidasse com a solidão e com o sentimento de liberdade ou de abandono que dela decorre, definiria a sua existência. Enquanto pessoa só seria verdadeiramente autêntico quando aceitasse a solidão como condição de liberdade. Mas como seria possível superar o peso da solidão sem a tentação de procurar no outro uma possibilidade de partilha? Deixar de esperar por algo que o libertasse e seguir um

pertença

saturado de veredas que não conduziam à realização dos desejos alimentados desde a juventude, ele havia sonhado com o regresso à grande metrópole para, num derradeiro impulso, ir ao encontro do projeto de vida que o acaso e as suas más decisões haviam torpedeado. Porém, angustiava-se com a ausência de um sentimento de pertença. Sentia que não pertencia a lugar algum e que jamais iria sentir-se verdadeiramente em casa. A infância num lugar, a juventude noutro e depois passagens por outros locais sem qualquer vinculação afetiva. Em rigor, ele havia passado a vida a afastar-se de lugares, de pessoas e, talvez por isso, nunca algo lhe tinha proporcionado a sensação de pertença. Há muito que ele se mantinha ali parado, como se aquele vento frio lhe pudesse trazer um qualquer sentimento de pertença, que ele desejava, mas que nada tinha feito para o merecer.

barman

o barman aproximou-se e ele aproveitou para pedir mais uma cerveja. O barman sorriu e disse-lhe: “olhe que já são umas quantas e não vai resolver nada!”. Mais outra pessoa sensata, pensou ele, e respondeu: “é a última e estou a ser sincero... esse é o meu grande problema!” O barman regressou com a cerveja e afirmou: “o que normalmente se pensa não se deve dizer. O dizer tem de ser um deambular criativo entre o que se pensa e o que se quer fazer crer. Na dúvida, o melhor é sempre uma banalidade supostamente inteligente”. Surpreendido com a afirmação, ele perguntou: “mas então agora ser sincero não é uma virtude? Sem hesitação o barman retorquiu: “de facto a sinceridade é elegida como uma virtude primordial. Sê sincero! Diz-me com sinceridade! É aquilo que sempre se pede. Por vezes desejamos sê-lo. Ousamos até dizer o que pensamos. Mas, não raras vezes, corre mal: parece impossível que penses assim! Nunca imaginei! Isto na melhor das hipóteses!”. Mais um gole de cerveja para diluir a fil

ela

aluno sofrível, atleta medíocre, tímido e sem favores particulares de beleza, o percurso liceal não raras vezes havia sido sombrio para ele. Pelo contrário, ela era a rapariga mais bonita do Liceu e, naturalmente, era desejada por todos os rapazes. Nenhum perdia o ensejo de com ela falar, de se insinuar de todas as formas, mas para além de breves sorrisos nada mais obtinham do que um altivo adeus ou um aparentemente prometedor até já. Ele, por sua vez, tremia e ficava sem palavras sempre que ela se aproximava e para além de um olá nada mais saía da sua boca. Invejava desesperadamente os rapazes que mantinham longas conversas com ela, como se nunca lhes faltasse temas de conversa e a beleza dela não os perturbasse. Mas tudo mudou um dia! No final do período escolar sucediam-se os bailes organizados pela comissão de finalistas, de que ele fazia parte, para angariar fundos para a viagem que comemoraria o fim do Liceu. Ele desdobrava-se nas tarefas, desde cobrar os bilhetes de entrada até

valores

no café de sempre, onde todos se encontravam após as aulas para a bica e o cigarro, estavam só eles dois nesse dia. Talvez os outros colegas tivessem tido outros afazeres. A conversa versou sobre um episódio reprovável no seu entender. Um colega havia tido um comportamento que ele considerava inaceitável. Ela questionou os valores em causa de modo brilhante. Mas ele nem sequer aceitava quaisquer atenuantes. A dado momento ela concluiu dizendo: "os valores morais não são mais do que vaidades". Ele calou-se e ela foi-se embora. A conversa não havia durado mais do que dez minutos, se tanto! Pouco mais se falaram até ao fim do curso e depois ele não mais a viu. Passados alguns anos ele percebeu, enfim, a razão de ser da dúvida que sempre lhe surgia sobre a legitimidade que tinha para julgar os outros, sem que isso fosse uma tentativa envaidecida de afirmação de valores morais que ele acreditava serem absolutos.

alegria

A mala estava por fazer. Daqui a algumas horas ele iria mais uma vez viajar. Seria mais voltar do que ir. Nada de novo o esperava. Seria o repetido regresso. Entre as camisas e as calças que voavam para dentro da mala, já não iam saudades ou expectativas. Ele sabia o que o aguardava assim como sabia o que deixava. A magia da esperança há muito que se havia esfumado entre um aeroporto e outro e as horas maçadoras no interior claustrofóbico de um avião. O desafio era manter vivo o que sobrava. A morte nem sempre chegava de rompante, ela ia levando partes até à hora de recolher o remanescente. Era o processo natural!, meditava ele sentado na borda da cama. De repente pensou alto: "estou a distrair-me!"; "as coisas que eu vou buscar para evitar fazer aquilo que realmente importa: fechar a mala, chegar ao aeroporto a tempo, tentar dormir durante o voo e, no destino, resolver os assuntos pendentes – traçar o futuro imediato". Já não havia lugar para as ideias da plenitude

luz

como tantas vezes lhe acontecia relembrava aquela luz. Recordava os momentos em que só tinha encontrado segurança e consolo junto de quem o amava tanto que, não raras vezes, ele se havia esquecido dessa avalanche de amor. Dessa luz que se mantinha em seu redor, por vezes ténue, mas sempre iluminando a esperança. Uma luz inundada de silêncio confiante. Sentia e muito a falta dessa luz. Mas a sombra de agora ainda era tanto, pois ainda havia a imagem de sempre, embora turva em razão da lágrima insistente. A acidez da lágrima revelava o essencial de como o presente do futuro se havia tornado o passado em que a memória surgia envolta por aquela luz que tinha sido guia e hoje era moldura de valores. Iluminando a sensatez dilucidou a descoberta das coisas simples. Forçando a permanente busca de uma harmonia repousante fez emergir uma contraluz que afastou a sombra obscura. E, por fim, proporcionou a aprendizagem de um olhar sem nada esperar, tornando viúva a vida na esperança do reencontro.

happy enough

a garrafa de single malt estava quase vazia. Ele já nem sabia há quantas horas estavam ali sentados, conversando sobre os mais diversos temas. A sua fluência no inglês havia melhorado a partir de meia garrafa, não porque a taxa de álcool no sangue lhe atribuísse mais conhecimentos do idioma, mas tornava-o destemido, as palavras surgiam-lhe com impressionante ligeireza. O seu amigo britânico mantinha a fleuma de sempre, nada parecia perturbá-lo. É certo que ele estaria mais habituado a beber, mas impressionava-o a convicção das suas afirmações sob a influência do magnífico single malt que ele tinha tido a amabilidade de oferecer. A conversa foi se tornando mais intimista. E ele, sem saber porquê, questionou o amigo sobre se ele era feliz. Pela primeira vez, ele hesitou. A resposta não saiu com a altivez de costume. Ele estava a escolher as palavras. Se se tratasse de um seu compatriota teria surgido um fado, saudoso e amargurado, algo entre Camões e Pessoa, mas as influências dele eram

obsessão

ele gostava muito dela e quis tê-la para sempre, embora o sempre fosse pouco tempo para quem ama como ele a amava. Esteve por muito tempo examinando todos os bocadinhos da sua pele morena descobertos pela dobra do lençol, amarrotado não pela agitação do sono, mas pela urgente necessidade de carícias e abraços. Ao revê-la renasceu-lhe a esperança de que se ela acordasse ficaria feliz por vê-lo. Então decidiu-se: acendeu a luz do quarto. A expressão de horror dela deixou-o devastado. Lembrou-se dos momentos em que fora preciso preencher o silêncio, o que fez crescer nele a frustração de não ter conseguido saber tudo sobre ela. "Acabou! É tarde, agora será sempre tarde demais", disse ele, ao premir o gatilho do revólver encostado ao seu coração.

triste futuro

o fim de tarde de sexta-feira havia sido dramático. O diretor convocará uma reunião com todos os colaboradores para as seis da tarde, o que evidenciava desde logo a sua falta de senso. Ele não gostava do diretor, achava-o pouco inteligente, com uma formatação mental quadrada. Nunca havia observado nele um qualquer rasgo de brilhantismo, uma ideia medianamente original que fosse. Como sempre acontece, ele era arrogante para com os subordinados e submisso para com os superiores hierárquicos. Apesar disso, invejava-lhe a determinação, o empenho e a persistente ambição. “Sem dúvida um homem com um objetivo”, era o que todos diziam. Isso era algo que ele não entendia, mas preferia não questionar. Como ele já esperava o diretor não tinha nada de urgente ou sequer significativo para comunicar, limitou-se a expor uma ideia de trabalho não só absurda, como sobretudo inexequível - iria ser um desperdício de tempo e de recursos. Dos seus colegas ouviram-se uns ruídos: “hum, hum” – uma forma de a

bairro

ele saiu do metro na estação certa, o que nem sempre sucedia dada a sua falta de sentido de orientação, mesmo na cidade que o tinha visto nascer. Ao cimo das escadas deparou-se com o largo esperado. Era o início do percurso previsto. Subir demoradamente a rua que ligava aquele largo a um outro largo. Toda a sua infância estava ali para ser recordada. Foi caminhando, olhando e comparando com as suas memórias. Tudo estava velho e um pouco degradado, onde ele havia sido criança. Alguns prédios estavam pintados de novo, mas não eram menos velhos por isso. As lojas não eram as mesmas, ou talvez ele não se recordasse que lojas haviam sido. Tudo lhe parecia um pouco estranho. Nada lhe revelava o lugar onde tinha sido novo, pois agora tudo era velho como ele. Outrora aqui tinha imaginado futuros esplendorosos. Tudo se afigurava possível. Voltar jamais! O espírito de conquista toldava-lhe então o discernimento e julgava-se infeliz. Mas, afinal, aqui havia sido onde ele tinha sido feliz. Aqui os

silêncio

ele não parava de desdenhar o local onde havia nascido, onde vivia e no qual tinha passado a maior parte da sua vida. Não era a espantosa luz, o rio ou as colinas da cidade, mas sim os seus habitantes. Era a degradação humana, fruto da desenfreada ambição, plasmada numa cruel competição e num interminável exercício de afirmação. Os amigos mais viajados sublinhavam que era igual em todo o lado. Mas ele realçava que até as pessoas da sua geração que, por certo, a vida lhes havia ensinado o quão insensato era tudo discutir e criticar, não continham o impulso de opinar sobre tudo e muitas vezes sobre nada, sempre com a maior paixão. Se a opinião era instantânea, sem qualquer análise e interpretação, e quase sempre mordaz, o desinteresse pelo assunto era igualmente imediato. O agora fazia tábua rasa da véspera. Tudo era fugaz e o imperioso era afogar o espírito em intermináveis discussões: competir sempre, troçar e esquecer com o maior vigor. "Mas não será isso um sinal de que as pesso

gato

é próprio do gato sair sem pedir licença e regressar sem dar satisfação. Mas após vasculhar todo o apartamento, mesmo nos locais mais improváveis, não havia nenhum sinal do gato. Desesperado, ele percorreu as redondezas do prédio, enquanto recordava o encanto particular do gato que, no seu entender, ultrapassava o encanto imemorial dos gatos. O gato vivia em seu redor, na sua cama, nos sofás, nas cadeiras, na mesa de trabalho. Quando os livros, os papéis e o computador portátil se ajustavam de modo organizado na mesa de trabalho, o salto preciso do gato para atingi-la era mais do que um impulso para a cultura. Os livros e os papéis beneficiavam da sua presteza austera, ele garantia a posição deles sentando-se numa posse graciosa. À altivez, serenidade e elegância do gato juntava-se a evidência de um símbolo de guardião da vida intelectual. Mesmo quando entendia passear sobre o teclado do computador portátil, o que apagava dos textos escritos era, quase sempre, o que era mais medíocre d

se

eles iriam gostar de se conhecer. Possuíam ideias semelhantes, gostavam e desgostavam das mesmas situações, dos mesmos livros, músicas, filmes e até muitas das suas atitudes eram similares. Havia também uma predisposição fantasmática. Enfim, coisas do passado que os marcaram. Eles pareciam convergir um para o outro, pelo menos era o que ele pensava. A receção do lançamento de um livro de um autor de que eles gostavam e do qual ele era o editor seria a ocasião ideal. Os convites seguiram por e-mail e ambos responderam afirmativamente. Cruzaram-se os olhos, trocaram-se os cumprimentos e a conversa iniciou-se. As suas afinidades eram óbvias. O sentido de humor de ambos mantinha os sorrisos nos rostos. As discordâncias acabavam em risadas, pois um deles tinha sempre a piada certa para tornar a diferença compatível. Saíram em busca de um local onde pudessem tomar uma bebida e conversar sem que as pessoas que se encontravam na receção os incomodassem. Ao atravessarem uma rua ele deu-lhe a mã

essência da amizade

muitos consideravam que ele tinha vocação para eremita. Isolava-se com frequência e tinha poucos amigos. Era quase sempre reservado, embora tivesse sentido de humor. Quando confrontado com aquela opinião sobre ele, referia que muitas vezes precisava de estar sozinho, mas não era solitário, pois também lhe agradava conviver. E se não tinha muitos amigos era porque isso não era de todo possível. A amizade não era um espaço incomensurável, tinha os limites que decorriam da própria natureza do sentimento. “Ninguém pode ter milhares de amigos”, dizia amiúde, “pois se assim for não terá quaisquer amigos”. Quanto à sua habitual reserva, a justificação era perentória: “é menor o risco de dizer algum disparate”. Também costumava acrescentar: “eu reconheço que sobre muitos assuntos eu sei pouco ou nada, por isso, parece-me sensato estar calado”. Os seus poucos amigos conheciam a sua propensão depressiva, mas elogiavam-lhe a generosidade, a inteligência e o nível cultural. No entanto, queixavam-s

obrigação

a alameda da Universidade estava repleta de estudantes. Comemorava-se o dia do estudante. Ele procurava esquivar-se por entre o emaranhado de corpos exultantes perante as palavras de ordem proferidas através de um megafone por um dos líderes estudantis. Ia sorrindo para os colegas que lhe acenavam para que ele se lhes juntasse. Definitivamente ele não entendia a importância dos dias disto e daquilo. Porventura estaria errado, como estava sobre muitas outras questões. Afinal ele ainda não tinha tido tempo de vida suficiente para entender muitas coisas. Estudar era uma obrigação. Supostamente viria a ter benefícios futuros com a conclusão do curso. Mas a verdade é que a decisão de estudar não havia sido um impulso interior, um desejo inquebrável. Aliás, ele nem sabia o que isso era! Apesar de ser uma obrigação, não lhe desagradava o estudo, embora uma ou outra matéria o entediasse. Mas daí a julgar-se o “futuro do país” como se gritava naquela Alameda, parecia-lhe um claro exagero. Se el

direito como condição da liberdade

Importa observar, sucintamente, o modo como foi vislumbrada, por diversos autores, a necessidade de regulação da convivência humana e a consequente compaginação entre o direito e a liberdade. Para Thomas Hobbes (1588-1679), antes da existência de um estado civil, garantido pelo Estado, existe um estado de natureza, sendo este definido como uma situação de guerra generalizada, conflito de todos contra todos, proporcional ao direito de todos a tudo. Neste contexto, todos os indivíduos acabam por tomar consciência do carácter insustentável dessa situação e procuram sair dela, firmando um contrato de mútua transferência de poder. Nesse momento em que, por acordo e consentimento, irrompe o contrato que determina o termo do estado natural, inicia-se o estado civil. Poderemos, assim, afirmar que para Hobbes o exercício da liberdade só se torna possível com a instituição da ordem estatuída pela lei. John Locke (1632-1704), por seu turno, parte da hipótese de um estado de natureza caracterizado

cabeça de homem

como sempre chegou já de noite ao condomínio onde morava. Arrumou o seu carro de luxo na garagem. Subiu no elevador que a conduziu ao seu apartamento igualmente luxuoso. Era uma executiva de sucesso, com um rendimento anual com muitos dígitos. Havia sido uma aluna brilhante na Universidade e dedicava-se inteiramente à sua atividade profissional. Tomou um banho regenerador e depois uma refeição ligeira. Pegou no computador portátil, serviu-se de um copo de Chardonnay que colocou sobre a mesa de apoio junto à muito confortável chaise longue onde se deitou. Com o comando remoto ligou a aparelhagem de alta fidelidade e selecionou uma playlist de smooth jazz. Tinha um par de relatórios que precisava de rever. Porém, não conseguia deixar de pensar na conversa que tinha tido com umas amigas de longa data ao almoço. Uma ridícula conversa sobre cartas de amor, sendo que ela tinha referido que jamais havia escrito algo que se assemelhasse. Uma das amigas retorquiu de imediato que ela não tinha d

condenação à liberdade

ele estava receoso quanto às notícias que o advogado lhe iria dar. Tinha sido ilícito o ato que havia praticado, mas esperava que as atenuantes existentes lhe pudessem aligeirar a pena. Sentia o suor a escorrer pelas costas quando entrou no gabinete do advogado. Após o cumprimento formal, o advogado foi direto ao assunto: "você deverá ser condenado à plena liberdade". Ele recusava-se a crer que iria ser obrigado a ser totalmente livre. Sem limitações, constrangimentos, pressões ou influências, as suas escolhas seriam somente aquilo que ele de facto quisesse. Não precisaria, a partir de então, de elaborar justificações mais ou menos racionais para as suas decisões. Os seus impulsos ficariam absolutamente libertos de barreiras. Era uma espécie de pena capital. Ele arrependia-se amargamente do ato praticado, mas perante a probabilidade de tal condenação, ficou arrasado. Sentia que a sua vida se iria tornar impossível. Era, afinal, a antecâmara da morte. O seu coração galopava, o

chávena de café

o amigo dele estava visivelmente feliz. Nem foi necessário perguntar. Ele começou logo a falar: "eu gosto muito dela! Vê tu que ela todas as manhãs me traz à cama o café na minha chávena preferida!". "Bom, para isso poderias contratar alguém!", respondeu ele. "Tu não percebes: eu gosto muito dela!", reiterou o amigo. "Eu entendo", condescendeu ele, "mas espero que não seja pela chávena de café?". "Ouve, o sexo também é fantástico!" acrescentou o amigo. "Nem sempre é preciso gostar muito para que assim seja", retorquiu ele. "Não te entendo, sinceramente!", disse o amigo já um pouco aborrecido. "Gostar muito é difícil de explicar, eu sei!", afirmou ele calmamente. E prosseguiu: "A justificação surge, as mais das vezes, ligada ao aspeto físico, à inteligência, ao nível cultural, às qualidades de carácter, enfim, coisas desse género; mas, em bom rigor, é só uma tentativa de racionalizar o irracio

José Acúrsio das Neves, um conservador iluminado

O desiderato desta breve análise à vida e à obra de José Acúrsio das Neves é salientar as influências que, através dos diversos tipos de enquadramento familiar, académico e profissional, deram forma à ligação entre o indivíduo e a sociedade e, também, verificar a conformidade estrutural da sua obra literária com essa ligação. Em 14 de Dezembro de 1766, no lugar de Cavaleiros de Baixo, concelho de Fajão, distrito de Coimbra, nasce José Acúrsio das Neves, filho de Antônio das Neves, bacharel em Cânones, e de Josefa da Conceição. No que concerne ao enquadramento familiar, Acúrsio das Neves terá tido uma educação religiosa e rigorosa no seio de uma família abastada.  Antes de completar o seu décimo-sexto ano de vida, em 30 de Outubro de 1782, matricula-se no 1º ano do curso de Leis da Universidade de Coimbra, o que faz supor, desde logo, uma aprendizagem escolar básica cuidada. Volvidos cinco anos, tantos quantos compunham o respectivo curso de Leis, concluiu a sua formação universitária,

persistência da memória

a doença não parecia querer libertá-lo. Sonhava de olhos acessos enquanto o seu corpo fervia. Há pouco havia visto a sua mãe. Ela deu-lhe a mão e colocou um pano húmido na sua testa, o que muito o aliviou. Só poderia ter sido ela, pois a doçura de mãe é inconfundível. Quando a enfermeira entrou no quarto para verificar os seus sinais vitais, ele sentia-se dormente. Perguntou-lhe se alguém havia ali estado antes dela. A enfermeira respondeu-lhe que não e acrescentou que ele tinha passado bem a noite. Embora ele nunca passasse bem, compreendia a afirmação da enfermeira: afinal ele ainda estava vivo. Obviamente a sua mãe não tinha estado naquele quarto, pois ele era demasiado velho para que os seus pais ainda estivessem vivos. Já se encontrava doente há tempo suficiente para que a ideia da morte se tivesse tornado constante. Sentia sobretudo a falta dos seus entes queridos. Era a ausência deles que mais o atormentava perante a morte. Tinha perdido tanto tempo longe deles. Tantas vezes lhe

queda

o iPod, através dos headphones, reproduzia um velho álbum de John Coltrane. A viagem no comboio intercidades tenderia a ser mais aprazível durante algum tempo ao sabor do saxofone tenor de Coltrane. Depois, talvez dormir um pouco fosse o mais indicado, pensou ele, enquanto se recostava no assento. Entretanto, reparou que o homem ainda jovem sentado ao seu lado pegava num livro, por certo em busca de um entretenimento para as horas de viagem. Ficou surpreso quando verificou que se tratava de "A Queda", de Albert Camus. Aquela inquietante obra havia provocado nele um longo período de reflexão e, em consequência, uma nova perspetiva sobre diversos aspetos da natureza humana. Até a aferição do seu comportamento quotidiano tinha passado a ser efetuada segundo outros cânones. Conquanto sempre ambíguo, indefinido e em constante fuga, a sedução do monólogo dramático, com um diálogo implícito, de Jean-Baptiste tinha-o induzido a um autorreconhecimento culposo. A hipocrisia, o cinismo,

esquina da loucura

já era de noite. Ele caminhava há horas sem destino. Simplesmente caminhava. E ia falando como se estivesse mantendo um diálogo. Os seus supostos interlocutores iam variando. Eram sempre pessoas que ele conhecia e com as quais havia muitas vezes conversado. Formulava questões, o suposto companheiro de caminhada respondia e ele retorquia. As conversas versavam sobre assuntos que, de um modo ou de outro, o tinham afetado ou poderiam vir a afetar. De repente, ao dobrar uma esquina, cruzou-se com uma pessoa que sorriu ao verificar que ele falava sozinho. Sentiu-se envergonhado. Ele não era louco ou, pelo menos, julgava não ser. Em rigor, a fronteira entre a sanidade mental e a loucura era manifestamente porosa. Não era a primeira vez que ele falava sozinho. Na rua era menos comum, mas em casa fazia-o com frequência. Sofreria ele de alguma doença mental? pensou deveras preocupado. Nos últimos tempos diversas situações mantinham-no em permanente tensão. Talvez por isso ele sentisse uma maior

isso

aquela terça-feira iria ser bem diferente. Ele e mais dois dos seus amigos iam ao quartel do Exército em Setúbal para fazerem a inspeção para o serviço militar obrigatório. Primeiro o barco para atravessar o rio Tejo e depois o comboio até Setúbal. Apesar de ser bastante cedo, aquela viagem divertia-os. Na instalação militar estava um número considerável de jovens: os mancebos. O procedimento ocupou toda a manhã. Em alguns momentos, como era de esperar, houve alguma galhofa. Todos saíram do quartel com uma guia com o carimbo: "aprovado para todo o serviço". No entanto, eles sabiam que não iriam ser chamados para a "tropa" tão cedo, porquanto iriam solicitar o adiamento da incorporação por motivo de estudo. Assim, o tempo que faltava para enfrentarem essa situação era longo - uma eternidade para quem tinha dezoito anos de idade. Na viagem de regresso, no comboio, ele contou aos amigos que o seu irmão mais velho havia cumprido o serviço militar obrigatório, tendo pass

encanto

há algum tempo que ele vivia sozinho naquele pequeno apartamento num bairro antigo da cidade. Todas as manhãs caminhava até à rua principal e na esquina visualizava o café com grandes vidraças, o que permitia observar os clientes tomando o pequeno-almoço ou simplesmente uma bica. Percorria mais cem metros e colocava-se na fila da paragem do autocarro que o havia de conduzir até perto do emprego. Aquela manhã era igual a muitas outras. Porém ao passar pelo café viu-a. Ela tomava a bica matinal. Não percebeu logo o que estaria a fazer com que abrandasse o passo e não conseguisse deixar de olhar para ela. Procurou não insistir no olhar, mas era difícil. Ela era alta, porventura mais do que ele, tinha cabelos de ouro e olhos de mel. Era elegante e estava vestida com uma simplicidade requintada. Por momentos perdeu a noção do tempo. Verificou que o autocarro chegava e teve de correr para não o perder. A visão daquela mulher acompanhou-o durante todo o dia. Quando regressou a casa, já de noi

21 dias

ela voltava àquele jardim, como sempre, para fotografar, mas também para reforçar a sua autoestima que se encontrava abalada. Tinha sido naquele belíssimo jardim que ela, outras vezes, havia reencontrado a tranquilidade. Logo cedo pela manhã, naquele domingo, estava porventura sozinha entre as árvores e os pássaros, com a visão livre para o esplêndido relvado. Caminhava lentamente e ia fotografando, aqui e ali, sempre que a imagem lho pedia. Começava a sentir-se muito bem quando reparou que um homem jovem, bastante jovem mesmo, estava deitado na relva rodeado de livros. Deitado de barriga para o ar com um livro numa mão e coçando a cabeça com a outra mão, o que lhe despenteava o cabelo, parecia estar numa outra dimensão. Ele virou-se e ficou de rabo para o ar, pegou num caderno e começou a escrever freneticamente. Depois rebolou e começou a fazer caretas. Ela não resistiu e fotografou-o. Quando visualizou a fotografia no visor da máquina não conseguiu evitar sorrir. Foi então que verif

reinventar

a s viagens de avião tinham sido frequentes, mas esta era diferente: a azáfama dos passageiros a colocarem as bagagens de mão nos compartimentos por cima dos assentos não o incomodava, nem tão-pouco os movimentos e os avisos das/dos assistentes de bordo. Antes, o desejo de chegar ao destino mantinha-o tenso e o tempo até que o avião levantasse voo era uma tortura. Uma reunião, uma conferência ou algo do género era sempre o que o esperava e, apesar da experiência acumulada, ele nunca conseguia deixar de se preocupar. Durante o voo o que lhe ocupava a mente eram os horários, os temas que tinha de abordar, os possíveis incidentes e as recomendações que lhe haviam sido feitas. Um verdadeiro desassossego! Agora era diferente: tinha a mente liberta de tais preocupações. Embora lhe desagradasse pensar no passado, no que tinha vivido ou no que deveria ter vivido, esta tranquila viagem en route de uma confraternização com amigos de longa data impulsionava a divagação pela memória. Em boa verdad

morte

a vaga de ternura que lhe enchia o coração não era o movimento de uma alma que conduz o filho à evocação do pai falecido, mas a incompreensão que um homem feito sentia como se fosse uma criança injustamente espoliada do seu herói. A sequência do tempo agitava-se em torno dele, imóvel entre as sepulturas, e os anos deixavam de se ordenar ao longo do grande rio que corre em direção à foz. Na estranha vertigem em que se encontrava naquele momento, a estátua que todo o homem acaba por erigir no fogo dos anos começava a ruir. Ele era tão só um coração angustiado, perturbado pela avidez de viver e revoltado contra a ordem mortal do mundo. A vida é algo que acaba sempre mal. Quando jovem pedia mais do que ele lhe podia dar: emoções permanentes. Depois, pedia menos do que ele lhe podia dar: uma companhia sem frases. Agora, as emoções, o amor e os seus gestos nobres tinham o valor de milagre, com o efeito de graça recebida. A sua cabeça incendiava-se com a imagem de um homem que não desejara ne

talvez um dia

talvez um dia o que foi perdido renasça. Talvez um dia as palavras que ficaram por dizer possam ser ditas. Talvez um dia as esperas inúteis sejam consequentes. Enfim, talvez um dia tudo possa ser diferente. Agora, da profundidade do abismo, tudo se afigura desperdiçado. A voragem de uma fornalha que consumiu a busca de um desígnio vão. Nem sempre foi assim. Em algum momento a luz, embora ténue, sobressaltou a esperança. Apontou a estreita vereda que desaguava na aurora do destino inesperado. Mas o encanto celestial do encontro com a harmoniosa paz dissipou-se na penumbra do entardecer. No amontoado de cinzas, aqui e ali, ainda subsistem pedaços de memória, detalhes de abrigos que consolaram desventuras e deram alento para prosseguir a caminhada. Talvez um dia, no que falta percorrer, ainda algo possa reacender o desejo de ser, de ficar para além do outrora destruído pela tempestade da incerteza. Nada é mais banal do que a insatisfação com o alegado destino, o fado melancólico, como mei

sucesso

queres ter uma vida de sucesso? como todos os outros ou quase todos? é claro que a resposta é sim! como posso dizer que não? então vou iniciar-te: estuda, consegue um emprego, uma família, férias organizadas. os gorilas vão chamar-te doutor. os seus enormes dentes cravam-se até ao teu osso. mas a organização não é deles, é tua! afinal quem vai iniciar quem? Fico entediado com a maior parte das pessoas. construí, peça por peça, uma vida de complicações e dramas. é preciso que algo aconteça - eis a explicação da maior parte dos compromissos humanos. ser servo sem senhor. a servidão sorridente é a alma do negócio. mas a máquina parou inexplicavelmente: foi nesse momento que a ideia da morte irrompeu. conto os anos que me separam do fim. atormenta-me a hipótese de não ter tempo para concluir as tarefas. mas quais tarefas? não sei, com franqueza! persegue-me um temor ridículo: não se pode morrer sem revelar todas as mentiras! o morto adormecido sobre os seus segredos: o assassinato absoluto