Mensagens

Permanência e Mudança - uma introdução

Da História das Ideias Perscrutar as ideias de um determinado período histórico significa procurar interpretá-lo segundo as concepções que constituem os eventos, factuais ou intelectivos, e, simultaneamente, intelegir uma evolução projectada no futuro através da identificação de permanências e de mudanças. A reflexão de quem, na actualidade, se debruça sobre o passado e o próprio passado torna-se, assim, elementos inseparáveis. O passado é presente no âmbito da compreensão e da interpretação desse passado. E o presente existe no passado enquanto potência que se actualiza. Neste contexto, “ A História das ideias define-se menos pela incidência reflexa do acontecimental ou do serial da história e define-se mais   pela pensabilidade do facto, pela tensão do facto e pela perspectiva interrogante, para além das exigências estritas do cuidado heurístico e do tempo histórico ” [1] . A História das ideias políticas tem uma especificidade própria que decorre da incidência do seu objecto de es

"É preciso imaginar Sísifo feliz"

"As pessoas encontram sempre o seu fardo. Mas Sísifo ensina a felicidade superior que nega os deuses e ergue as rochas. Também ele acha que está tudo bem. Este universo, doravante sem dono, não lhe parece estéril nem fútil. Cada grão da pedra, cada fragmento mineral da montanha, cheia de noite, forma por si só um mundo. A própria luta para chegar ao cume basta para encher o coração de um homem. É preciso imaginar Sísifo feliz.” A. Camus, O Mito de Sísifo, 1942 Viver é um hábito. O suicídio, o fim antecipado desse fardo, resulta da percepção do vazio, da falta de fundamento e de propósito do costume da existência. O caráter inútil da existência e os paradoxos da condição humana, estribados na contradição entre o desejo obstinado de vida e o mundo intratável, são as antinomias que cristalizam a vanidade da existência. A morte é, a final, a síntese entre a paixão pela vida e a efêmera condição humana sempre no limite de perecer. Estas absurdas antinomias esgotam quaisquer sentidos ou

outono

era uma manhã sombria de um outono que tal como todos os outros introduzia o início de uma época triste - o final do ano com a melancolia do Natal, a saudade dos que já partiram não só no ano que findava, mas em todos os outros. A última década havia sido salpicada por dúvidas sobre o sentido da vida e de como acomodar os vários ciclos da vida desde a infância à velhice em busca de um final tranquilo, conquanto saudoso da euforia das conquistas e da tristeza das desventuras. Mas os finais nunca são tranquilos, pois aquilo que finda gera sempre múltiplas interpretações, só mesmo a morte decide de vez tudo. No outono da vida impõe-se o bom senso de existir aceitando o possível. Sobrevalorizar as pequenas alegrias e rejeitar a culpa dos fracassos é a pedra de toque. Porém, o final do final é a solidão triste da amargura dos caminhos não percorridos, de todos os ses que poderiam tudo mudar e afinal aqui estar aguardando simplesmente o fim.

felicidade clandestina

ele não estava certo se o período de nojo já haveria passado, mas a saudade impunha-lhe a necessidade de escrever. Era o outrora vivido e agora desejado que naquele fim de tarde invernoso desviava o seu olhar do livro que pretendia ler e o empurrava para a secretária, onde se encontrava o computador portátil, rodeado de papéis, livros, blocos e uma porta canetas, tudo criteriosamente arrumado, como tinha de ser! O frio que se fazia sentir era-lhe desconhecido, mas até lhe agradava e, por isso, mantinha a janela aberta. A grossa camisola de lã que vestia não era usada há muito. O final de tarde permitia ainda observar o céu azul e a lua cheia iluminava ternamente aquele canto do apartamento que era o seu refúgio. O silêncio que pairava facilitava a reflexão sobre o passado e o presente. O futuro, essa incerteza motivante, já não lhe parecia motivo de qualquer especulação. A vida era tão trágica, pensava ele já sem qualquer tristeza; é tão semelhante a um pequeno passeio sobre um abismo.

carta

todos os dias ele a aguardava; o anoitecer era neutro, restando o amanhã. Via-a aparecer em sonho e cerrava os olhos como se soubesse que não a merecia ou como se quisesse adiar o instante. Esperar era quase receber. Há meses que cismava em recebê-la. Mas quais seriam, afinal, as dádivas que ela deveria trazer-lhe? Ele nem hesitava: seria o infinito a envolver a sua finitude. Porém, o amanhã e outro amanhã e depois passavam; suspeitou então de uma qualquer recusa ou de que alguém brincava com a sua urgência, distraindo-se por loucos itinerários. Conjeturou também mil formas de um eventual desencontro. A esperança resistia ao desengano. Ele queria acreditar que todos os dias ela se aproximava e quase sentia o seu pulsar, julgando que uma força subterrânea a iria trazer. Mas agora sabia por que ela não tinha vindo nem viria. Havia sido a dimensão do tempo e o incontornável acaso, essa conjugação de irracionalidades que reconfiguravam o real, transformando o idealizado num impossível dese

emoção da cebola

ele já havia saído com ela algumas vezes, mas naquela noite era um jantar na casa dela. As flores e a garrafa de vinho enquadravam o cuidado vestuário, a barba escanhoada e um pouco de água-de-colónia a mais. Dez minutos antes da hora marcada, ele já rondava o prédio onde ela morava. Era Verão e a noite estava quente, mas ele não podia caminhar para matar o tempo, pois o suor poderia alterar o aroma da água-de-colónia. Embora desejasse mais do que nunca fumar um cigarro, ele não queria que o hálito a tabaco colocasse em causa a sua julgada perfeição. Um minuto antes da hora certa, ele pressionou a campainha, a porta de entrada no prédio abriu-se, depois o elevador, que pareceu subir lentamente, por fim a porta do apartamento. Ela surgiu de avental e a choramingar, dizendo em pequenos soluços: “o jantar está um pouco atrasado”. Ele emocionou-se com aquela nunca vista fragilidade e num impulso abraçou-a, o que até então não havia acontecido, e murmurou-lhe ao ouvido: “eu não suporto vê-l

vento da memória

numa noite em que o vento golpeava as suas memórias, sentado naquele banco em frente ao prédio onde vivia, numa rua que configurava a selva de pedra que era aquele subúrbio da grande cidade, ele fumava o último cigarro do dia após ter despejado o saco do lixo no enorme caixote. Depois de diversos anos vividos longe daquela vila que agora era alegada cidade, recordava o tempo em que toda aquela área eram campos que ele percorria no caminho para o Liceu. A sua juventude havia sido enterrada na voragem da suposta construção de uma vida. No tempo do consumo de um cigarro, o fumo que saía da sua boca entoava uma canção de outono que salientava a recordação desses dias: a felicidade dos encontros, os cabelos ao vento, os beijos roubados, os juramentos inconsequentes e os sonhos mudados.