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A mostrar mensagens de dezembro, 2023

"É preciso imaginar Sísifo feliz"

"As pessoas encontram sempre o seu fardo. Mas Sísifo ensina a felicidade superior que nega os deuses e ergue as rochas. Também ele acha que está tudo bem. Este universo, doravante sem dono, não lhe parece estéril nem fútil. Cada grão da pedra, cada fragmento mineral da montanha, cheia de noite, forma por si só um mundo. A própria luta para chegar ao cume basta para encher o coração de um homem. É preciso imaginar Sísifo feliz.” A. Camus, O Mito de Sísifo, 1942 Viver é um hábito. O suicídio, o fim antecipado desse fardo, resulta da percepção do vazio, da falta de fundamento e de propósito do costume da existência. O caráter inútil da existência e os paradoxos da condição humana, estribados na contradição entre o desejo obstinado de vida e o mundo intratável, são as antinomias que cristalizam a vanidade da existência. A morte é, a final, a síntese entre a paixão pela vida e a efêmera condição humana sempre no limite de perecer. Estas absurdas antinomias esgotam quaisquer sentidos ou

outono

era uma manhã sombria de um outono que tal como todos os outros introduzia o início de uma época triste - o final do ano com a melancolia do Natal, a saudade dos que já partiram não só no ano que findava, mas em todos os outros. A última década havia sido salpicada por dúvidas sobre o sentido da vida e de como acomodar os vários ciclos da vida desde a infância à velhice em busca de um final tranquilo, conquanto saudoso da euforia das conquistas e da tristeza das desventuras. Mas os finais nunca são tranquilos, pois aquilo que finda gera sempre múltiplas interpretações, só mesmo a morte decide de vez tudo. No outono da vida impõe-se o bom senso de existir aceitando o possível. Sobrevalorizar as pequenas alegrias e rejeitar a culpa dos fracassos é a pedra de toque. Porém, o final do final é a solidão triste da amargura dos caminhos não percorridos, de todos os ses que poderiam tudo mudar e afinal aqui estar aguardando simplesmente o fim.

felicidade clandestina

ele não estava certo se o período de nojo já haveria passado, mas a saudade impunha-lhe a necessidade de escrever. Era o outrora vivido e agora desejado que naquele fim de tarde invernoso desviava o seu olhar do livro que pretendia ler e o empurrava para a secretária, onde se encontrava o computador portátil, rodeado de papéis, livros, blocos e uma porta canetas, tudo criteriosamente arrumado, como tinha de ser! O frio que se fazia sentir era-lhe desconhecido, mas até lhe agradava e, por isso, mantinha a janela aberta. A grossa camisola de lã que vestia não era usada há muito. O final de tarde permitia ainda observar o céu azul e a lua cheia iluminava ternamente aquele canto do apartamento que era o seu refúgio. O silêncio que pairava facilitava a reflexão sobre o passado e o presente. O futuro, essa incerteza motivante, já não lhe parecia motivo de qualquer especulação. A vida era tão trágica, pensava ele já sem qualquer tristeza; é tão semelhante a um pequeno passeio sobre um abismo.

carta

todos os dias ele a aguardava; o anoitecer era neutro, restando o amanhã. Via-a aparecer em sonho e cerrava os olhos como se soubesse que não a merecia ou como se quisesse adiar o instante. Esperar era quase receber. Há meses que cismava em recebê-la. Mas quais seriam, afinal, as dádivas que ela deveria trazer-lhe? Ele nem hesitava: seria o infinito a envolver a sua finitude. Porém, o amanhã e outro amanhã e depois passavam; suspeitou então de uma qualquer recusa ou de que alguém brincava com a sua urgência, distraindo-se por loucos itinerários. Conjeturou também mil formas de um eventual desencontro. A esperança resistia ao desengano. Ele queria acreditar que todos os dias ela se aproximava e quase sentia o seu pulsar, julgando que uma força subterrânea a iria trazer. Mas agora sabia por que ela não tinha vindo nem viria. Havia sido a dimensão do tempo e o incontornável acaso, essa conjugação de irracionalidades que reconfiguravam o real, transformando o idealizado num impossível dese

emoção da cebola

ele já havia saído com ela algumas vezes, mas naquela noite era um jantar na casa dela. As flores e a garrafa de vinho enquadravam o cuidado vestuário, a barba escanhoada e um pouco de água-de-colónia a mais. Dez minutos antes da hora marcada, ele já rondava o prédio onde ela morava. Era Verão e a noite estava quente, mas ele não podia caminhar para matar o tempo, pois o suor poderia alterar o aroma da água-de-colónia. Embora desejasse mais do que nunca fumar um cigarro, ele não queria que o hálito a tabaco colocasse em causa a sua julgada perfeição. Um minuto antes da hora certa, ele pressionou a campainha, a porta de entrada no prédio abriu-se, depois o elevador, que pareceu subir lentamente, por fim a porta do apartamento. Ela surgiu de avental e a choramingar, dizendo em pequenos soluços: “o jantar está um pouco atrasado”. Ele emocionou-se com aquela nunca vista fragilidade e num impulso abraçou-a, o que até então não havia acontecido, e murmurou-lhe ao ouvido: “eu não suporto vê-l

vento da memória

numa noite em que o vento golpeava as suas memórias, sentado naquele banco em frente ao prédio onde vivia, numa rua que configurava a selva de pedra que era aquele subúrbio da grande cidade, ele fumava o último cigarro do dia após ter despejado o saco do lixo no enorme caixote. Depois de diversos anos vividos longe daquela vila que agora era alegada cidade, recordava o tempo em que toda aquela área eram campos que ele percorria no caminho para o Liceu. A sua juventude havia sido enterrada na voragem da suposta construção de uma vida. No tempo do consumo de um cigarro, o fumo que saía da sua boca entoava uma canção de outono que salientava a recordação desses dias: a felicidade dos encontros, os cabelos ao vento, os beijos roubados, os juramentos inconsequentes e os sonhos mudados.

solidão

que noite fantástica de Primavera. Céu estrelado, temperatura amena e uma incrível luminosidade. Aquela noite clara, que escondia a habitual escuridão angustiante, atenuava-lhe a solidão. À janela do quarto, passava em revista o seu sinuoso trajeto e, como antes como sempre, maldizia o facto de estar só. Estar só era a condição original. O nascimento é a projeção da pessoa no mundo, deixada à sua sorte, em busca de um porto de abrigo. Disso, ele não tinha dúvidas. A dificuldade era conformar-se com o malogrado percurso que o havia conduzido àquele quarto. Estava igualmente seguro de que o modo como lidasse com a solidão e com o sentimento de liberdade ou de abandono que dela decorre, definiria a sua existência. Enquanto pessoa só seria verdadeiramente autêntico quando aceitasse a solidão como condição de liberdade. Mas como seria possível superar o peso da solidão sem a tentação de procurar no outro uma possibilidade de partilha? Deixar de esperar por algo que o libertasse e seguir um

pertença

saturado de veredas que não conduziam à realização dos desejos alimentados desde a juventude, ele havia sonhado com o regresso à grande metrópole para, num derradeiro impulso, ir ao encontro do projeto de vida que o acaso e as suas más decisões haviam torpedeado. Porém, angustiava-se com a ausência de um sentimento de pertença. Sentia que não pertencia a lugar algum e que jamais iria sentir-se verdadeiramente em casa. A infância num lugar, a juventude noutro e depois passagens por outros locais sem qualquer vinculação afetiva. Em rigor, ele havia passado a vida a afastar-se de lugares, de pessoas e, talvez por isso, nunca algo lhe tinha proporcionado a sensação de pertença. Há muito que ele se mantinha ali parado, como se aquele vento frio lhe pudesse trazer um qualquer sentimento de pertença, que ele desejava, mas que nada tinha feito para o merecer.

barman

o barman aproximou-se e ele aproveitou para pedir mais uma cerveja. O barman sorriu e disse-lhe: “olhe que já são umas quantas e não vai resolver nada!”. Mais outra pessoa sensata, pensou ele, e respondeu: “é a última e estou a ser sincero... esse é o meu grande problema!” O barman regressou com a cerveja e afirmou: “o que normalmente se pensa não se deve dizer. O dizer tem de ser um deambular criativo entre o que se pensa e o que se quer fazer crer. Na dúvida, o melhor é sempre uma banalidade supostamente inteligente”. Surpreendido com a afirmação, ele perguntou: “mas então agora ser sincero não é uma virtude? Sem hesitação o barman retorquiu: “de facto a sinceridade é elegida como uma virtude primordial. Sê sincero! Diz-me com sinceridade! É aquilo que sempre se pede. Por vezes desejamos sê-lo. Ousamos até dizer o que pensamos. Mas, não raras vezes, corre mal: parece impossível que penses assim! Nunca imaginei! Isto na melhor das hipóteses!”. Mais um gole de cerveja para diluir a fil

ela

aluno sofrível, atleta medíocre, tímido e sem favores particulares de beleza, o percurso liceal não raras vezes havia sido sombrio para ele. Pelo contrário, ela era a rapariga mais bonita do Liceu e, naturalmente, era desejada por todos os rapazes. Nenhum perdia o ensejo de com ela falar, de se insinuar de todas as formas, mas para além de breves sorrisos nada mais obtinham do que um altivo adeus ou um aparentemente prometedor até já. Ele, por sua vez, tremia e ficava sem palavras sempre que ela se aproximava e para além de um olá nada mais saía da sua boca. Invejava desesperadamente os rapazes que mantinham longas conversas com ela, como se nunca lhes faltasse temas de conversa e a beleza dela não os perturbasse. Mas tudo mudou um dia! No final do período escolar sucediam-se os bailes organizados pela comissão de finalistas, de que ele fazia parte, para angariar fundos para a viagem que comemoraria o fim do Liceu. Ele desdobrava-se nas tarefas, desde cobrar os bilhetes de entrada até

valores

no café de sempre, onde todos se encontravam após as aulas para a bica e o cigarro, estavam só eles dois nesse dia. Talvez os outros colegas tivessem tido outros afazeres. A conversa versou sobre um episódio reprovável no seu entender. Um colega havia tido um comportamento que ele considerava inaceitável. Ela questionou os valores em causa de modo brilhante. Mas ele nem sequer aceitava quaisquer atenuantes. A dado momento ela concluiu dizendo: "os valores morais não são mais do que vaidades". Ele calou-se e ela foi-se embora. A conversa não havia durado mais do que dez minutos, se tanto! Pouco mais se falaram até ao fim do curso e depois ele não mais a viu. Passados alguns anos ele percebeu, enfim, a razão de ser da dúvida que sempre lhe surgia sobre a legitimidade que tinha para julgar os outros, sem que isso fosse uma tentativa envaidecida de afirmação de valores morais que ele acreditava serem absolutos.